03.11.17

18/07/2018

Hoje é o dia. O mar cinzento assim que chego, dois meninos, um de cada lado. Dias nublados não trazem menos gente. Sentada ali sinto a brisa do vento que redobra meu furor. Temos sido mais ou menos quatro, quase os mesmos. Mari de costas para quem chega, Filipe de frente, Renato perto da horta, eu perto do banco. Capuano chega, tenho vontade de rir, ele vai cheirar toda essa farinha. Ele adentra o espaço, vê-nos, sorri um misto de sarcasmo e júbilo. Renata e Laura chegam. Renata entra no espaço. Escrever para ler. Estar. Junto só. Confiar que sim. Sim. Outro sim. Perto do chão. Escrever é pretexto. O deslizar da caneta muda de acordo com a ponta. Gosto da maneira desconhecida de nossa chegada, zigue-zague de corpos que se conectam, mais ou menos submersos em hoje, cheguei, eram cinco da tarde, a porta estava fechada. Ainda vai abrir? Vejo a luz que vem da janela. Talvez já tenha acontecido. É preciso esperar. Para além da porta. Há possibilidades infinitas nesses rituais simultâneos. Muitas elipses. Mari traz Nícolas, eles se conheceram há duas semanas, aqui mesmo, num encontro ao acaso. Você tem chiclete? Olho pra erika. Você tem chiclete? Me pergunto outra vez, mas não pergunto, nas bordas do espaço expositivo. Outra vez imaginações que não realizo. O renato volta do jardim. Chega uma criança vestida de melancia cuja mãe tira os sapatos. Chegam pessoas, a criança se aproxima da Erika. Sorrio para ela, com ela, sorrimos, enquanto a criança faz a festa, no duro, no puro desejo de durar, a sujar as mãos de farinha. Já faz dez quilos. Parece pouco. Ela quer por a mão. Tem curiosidade e medo. Vê cada detalhe. O chiclete, brinca com o chiclete. O pai diz, deixa aí, Helena, ela se chama. Eleonor, ela se chama. Gosto. O vestido dela é de morango, não, não, perdão, melancia. Olha nossa mão e diz que vai pegar mais poeira. Ela quer entrar dentro do Renato, pelo canto esquerdo. Gosto. Ela olha nossa mão, fala, adentra o Renato, metade do tamanho. Vai com a mão na cara de todo mundo e cabe inteira no buraco das minhas costas. Penso no mágico que parte a moça na caixa. São muitos fragmentos aqui hoje. Às vezes muda em questão de segundos e tenho que me reconfigurar inteira, o que cria pequenos solavancos no espaço, aonde chegam dois seguranças. Pisam com botas mais belicosas que as minhas, verdadeiros coturnos. Vão direto à Erika, deitada no colo da Mari. Dizem algo que não entendo. Penso em levantar, mas fico aqui. O que será que dizem? Algo relativo à ordem, talvez, mas o quê, exatamente? Vão embora, Erika permanece no colo da Mari. Acho que preciso do colo da Mari. Tudo está calmo, mas de um momento pro outro pode ficar tenso. Ao redor, pessoas exercitam a escrita. Trocam olhares. Escrevem deitadas, sentadas. Estranho ver alguém deitado no chão a fazê-lo. Uma garota adentra a sala e quando sai olha para nós – conecto, na cabeça dela, as folhas escritas ali, com estas, escritas aqui: as mesmas em instantes diferentes. Observo, sou observado. Estranho Centro este de corpos que riem, beijam e aqui estão, a se conceber em papel. Uns sussurram, outros conversam. De tudo há. Como em Los baños, só que em Los baños é mais tenso, estamos juntos, espalhados, e não nos conhecemos, cada desejo diferente, e tudo se mistura. Por exemplo, minha tristeza a este trabalho. Não julgo bem. Escrevo a ela, peço desculpas. Ela lê, não responde. Se soubesse da minha lua em câncer. Minhas orelhas quentes. Busco não olhá-la. Mas qual é o problema em olhá-la? Se a conexão entre nós é de fogo. O que estou fazendo aqui tão longe? O que falta? Ou não? O que me afasta? Devo apenas escutar meu corpo. Agora não é hora de ir aonde. Armado assim até os dentes, belicoso mais que os de coturnos. Devo antes soltar. Algumas armas. Não todas. Que importa? Importa ela. Agora e sempre. Desde que a conheci, na verdade. E por que mapeio os corpos do entorno com os olhos? Carregarei ainda a paranoia soviética, herança maldita arrastada de Cuba? Venho do estado de guerra. As lascas soviéticas deixadas naquela ilha – eu as sorvi. Provável que já andasse a ter com esses perversos pedaços. Agora, porém, à frente, não está o Estado. Nem a guerra. Haverá guerra possível numa criança que toca o chão e tateia a farinha e depois limpa as mãos no vestido de melancia? Tateio também. O chão mole. O pé chão. Onde a vida descansa depois daqui? Tenho vontade de deitar. Por que não? Porque ainda carrego a dureza em mim. Não quero ser capturada, mas esta obra gera uma demanda da qual fica difícil escapar. Essas palavras saem sem que eu saiba, antes da hora, o que serão. Isto que escrevo, é sob demanda. E tudo o que eu fizer aqui será sob demanda. Obra neutra, negativo e positivo se anulando. Não consigo nem me mover. O que sobra para mim aqui? Fazer ou não fazer? Se já fui capturado igualmente pelos dois lados. Há por onde dançar aqui? Com mortos e vivos assim presentes? O que sobra para nós? A presença do corpo ausente? Como posso estar tranquilo, se qualquer pensamento que eu tenha sobre a vida, a permanência, a melancia, será capturado aqui pelos opostos, pelo que se move e pelo inerte, pelo coração e pelo gesso? Me irrita, por exemplo, ser observado pelos dois que escrevem atrás de mim achando que estão criando alguma coisa a partir do meu movimento, mas só me aprisionam os já aprisionados pelo jogo da obra sem espaço. Só o enunciado, trazer um caderninho, o acordo de estarem outras pessoas com seus caderninhos, já é um saco. Só mais uma concordância de equilíbrio. Coisa sem crise, a crise aqui sou eu, capturado pela falta de crise. Cadê o sol? Sol sol sol sol sol. Está tudo entupido. O bate papo, o abraço, a soneca, tudo preso na própria soneca, abraço, bate-papo. Podemos nos juntar a eles, podemos só olhar, nada é proibido e tudo pode no espaço que nada pode. O que pode o gesso? Não está morto o corpo que perdeu a potência do vôo? Os desenhos daquela mulher, para onde vão? Cadê os caminhos? A obra sempre junto, não abre espaço. Não dá nem para falar. E esse cara aqui atrás, meio soltão, me olhando, de meia e tal, escrevendo uns bagulhos? Escrita-bolha, leitura-bolha, dança-bolha. Só pra criança é que não. Ao menos a Erika na farinha e a farinha nela começam a criar um corte. Quem sabe vaza sangue por ali. Água que seja. Talvez por aí flua algo. Em fogo, pode ser. Em vento. Em dança, bolo de gente, que irrompe e cria desequilíbrio! Inconstância. Mas logo se equilibra, de novo, e a morte legenda o cara que começa a ler, legendando a todos e a si mesmo. Parei. Se eu dissesse isso a qualquer um diriam, Candido, que dramático. Se o russo de Los baños lesse isso, diria com sotaque portunhol já paulistano, cara, tá esquentando muito, à toa. Diria ainda o que disse outro dia, se você sabe que vai morrer não pode existir nada mais simples do que viver. Se a morte é a referência, nada é tão complexo. Gostaria de pensar assim. Mas o branco também suja. Nossa sala jamais será limpa. Se antes queríamos limpeza, agora queremos o pó, Eleonor chamou de pó, e eu vejo pó também, sobre o qual Erika acaba de se deitar, no chão, descalça, à minha frente, de comprido, a escrever à entrada da nossa sala. Tenho fome. A esta altura a mãe e os demais já têm a cara toda de farinha. Hoje fecha mais cedo. Mas quem mede? Quem poderá dizer, deu tempo, não deu tempo? Tempo de quê? Tempo de quem? Não há muito tempo, um livro escorre de minhas mãos, e tudo em fluxo. Jogo fora as aspas e mergulho no canto esquerdo do verso terceiro, e na estrofe seguinte umidifico: é doce ver o torso da menina vã. Um dia, talvez, eu me redima, por ora devo minha jornada ao descobrimento de uma altivez. Afinal, somos coisa movediça e quando já não puder perceber, meus olhos ciscarão pela abertura da janela. Ali nos coloriremos e sorriremos outra vez da dobra do pescoço parado a diminuir a velocidade do pincel que entendeu que corria à toa. Dois passos atrás e a velocidade do tempo suspenso, sem interesse em concluir, libera o corpo da pressa, como o pincel que parou, refletido no corpo alheio. É pelo vão que vem a janela. Foi pelo buraco que resolvi desenhar o sapato. O buraco do sapato. A casa do pé. O pé. Enquanto. A mão. Enquanto. Afinação rara. Se ajustam no pulsar do movimento. Brotam de si. Roubam as palavras da boca e vêm a ser árvore, já que a palavra é o gesto de vir a ser (árvore). Tiro as meias e os sapatos para entrar no espaço. Vejo o revoar daquelas folhas. A meia, cheia de ar, ainda tem corpo dentro? Quantos não-corpos. Corpos-não. Corpos-mão. Deixam rastros. Se entregam. Ao chão. Lentidão para aproximação de corpos. O movimento é o que faz o tempo correr. O movimento de Sofia está hoje pela primeira vez. Lembro dos mortos-vivos que andam por aí há muito. Riem, eu também. Não dá para completar nenhum raciocínio. É tudo solto. Som, parede, chão, teto, pode tudo, tudo certo. Como dois e dois. Tudo. Me apetece cantar. Recomeçar, ao som do imaginário. Timbres, tonalidades que não vejo. No meio da dança ouço sussurros. Chego mais perto. Encosto meu ouvido. Reparo que há uma pequena fresta de luz. Sinto uma vibração. Agora ouço risos. Um poema é lido, as palavras são: amor, força, criação, sonho. Não coloco aspas. Texto nuvem não é fechado, desliza, desenha formas na poeira e se encaminha para onde o corpo leva. Escrever em estado de, poesia em estado de dança. Na sexta que de sexta é sempre outra. Exige prática, escutar o espaço. O verso do sentir. Puro estar estar estar. Contínuo irromper da forma. Por isso eu não reconheci ninguém. A equipe da segurança acaba de ser substituída, outra empresa contratada, a mesma que antes fazia a segurança do Hospital do Servidor, aqui do lado, e que agora é feita pela GCM, a mando do Dória, me contou o Arruda, chefe da segurança, que não conhecia o Centro Cultural até três dias atrás. Até quando estar? Como escrever a interação desses corpos que dançam ali no chão, enquanto um violino desafinado busca expressão? Enfrento meus demônios, sem exceção das vísceras. Assisto a tudo que isso evoca. Assisto aos corpos que agora se entrelaçam – ela ali no meio de tudo. Quero ir. Entrar nas tranças. Nem reparei, mas sinto com a pele dos pés o chão que agora piso. Será que consigo? O coração acelera. Reencontram-se os corpos do jardim suspenso. Uma e outra vez. Sorriem. A pele do corpo a encostar na pele do chão. Nem otimista nem pacífico. Ele não é feliz. Helena eleonor vem me avisar que vai embora. A porta da cozinha se abriu. As palavras me faltam. Hoje eu dão saltos. Deixam aqui uma epígrafe: o ser humano pode fazer o que quer, não pode é querer o que quer. A gente não quer desligar o projetor. A gente não quer sair daqui.

Grupo de estudos, programa performativo em O duro desejo de durar, exposição na segunda mostra do programa de exposições do Centro Cultural São Paulo. Escrevem Alan Rodrigues Athayde, André Capuano, Erika Kobayashi, Filipe dos Santos Barrocas, Laura Gorski, Mariana Viana, Nícolas Candido, Raquel Santos, Renata Cruz e Renato Jacques.

dia vinte e um

18/07/2018

Está consolidada a cena como lugar de experimentação. Hoje as propostas são dadas assim, Laris cochicha uma proposta a Lilian [que então vai até a varanda, fica de costas para nós. Seu tronco pende, ela segue de costas para nós, em pouco tempo um barulho se ouve, não se entende o que é, vem, mas não está lá, ah!, é a unha dela, arranhando o chão de cimento. Ela vem vindo, o som com ela, até a pele de trás das pernas pregar no vidro], André cochicha uma proposta a Laila [que então se torna um ser circunspecto, limitado e ligeiro, que dá sobressaltos, puxões e chega a gritar, depois balbucia. Sua postura é desequilibrada, sua figura fica entre patética e divertida, mas não sai do lugar], Renato cochicha uma proposta a Bárbara [que no interior de um círculo dança a lua cheia que passou], Filipe cochicha uma proposta a Fabi [que vai até o fim da varanda do outro lado, nos sentados na varanda de cá, e vem caminhando lentamente, no escuro, olhar na sombra, enviesado, vem lentamente, chega ao vidro, leva o indicador ao vidro, toca por inteiro o vidro e diz, cheguei], Lúcia cochicha uma proposta a Hamaya [que está numa pose de joelhos, o tronco inclinado para a frente, os dedos semicerrados. O banheiro com a porta entreaberta, a luz acesa, o barulho do exaustor. Ele então percorre variações desse tema], Aline cochicha uma proposta a Mari [que abre a porta, um sorriso engraçado, meio besta, ela fecha a porta do banheiro e refaz o sorriso, sai, volta, o sorriso, ela vai até um ponto preciso da parede, em que há um dente em direção à porta, e dança xifópaga de sua sombra na parede. Quando ela se inclina para a frente, a sombra do seu tronco está ligada ao seu quadril, como um grande cocozão. Ela abre a porta e vai embora], Paula cochicha uma proposta a Laris [que vai até o canto da sala, se cola ao canto e vai deslizando até o chão de maneira lenta e forçosa, não parece nada bom, ela chega ao chão, e de repente dispara numa corrida quadrúpede a gritar pelo espaço da sala, saindo pela varanda e desaparecendo atrás da cortina], Lilian cochicha uma proposta a André [que vai para a varanda de lá, nós na de cá, se senta no banco lá de frente para nós, solfeja um eee que vai decaindo conforme sua cabeça completa um giro lateral, faz de outro eee que vai decaindo conforme sua cabeça completa de maneira levemente diferente um giro lateral. Ele se levanta, vai até o parapeito, olha para baixo e solfeja novamente um eee em direção à rua. Se deita no banco e conforme dança solta o eee e então tenta suicídio], Laila cochicha uma proposta a Renato [o público numa varanda, eu na outra, a sala escura entre, eu me torno um ser que não é apenas a soma de cadeira e humano, mas uma outra coisa feita de cadeira e pessoa, apareço por trás da cortina, mirando ressabiado as pessoas, me assento no chão, minha alma se vai, a buscar outra cadeira para fazer outro ser que lentamente adentra o quadro, e assim por diante, até que de repente minha alma se vai de uma vez por todas e eu-não-mais-esse-ser apareço e desapareço], Bárbara cochicha uma proposta a Filipe [que apaga todas as luzes, fecha as cortinas, põe-nos deitados no chão a sentirmo-nos como se estivéssemos numa gincana de noite do pijama, prestes a brincar de mia-gato. No escuro não o vemos, toca Roberto Carlos, À distância], Fabi cochicha uma proposta a Lúcia [que vai até a varanda e dança suavidade], Hamaya cochicha uma proposta a Aline [que faz uma cena itinerante na qual vamos todos seguindo-a por todo o espaço], Mari cochicha uma proposta a Paulinha [que vai até a lateral da varanda que dá para o apartamento do casal com o bebê. Pela janela aberta vê-se um quadro que também pode ser uma fotografia, um grande espaço cinza que bem poderia ser o mar, um negrume alongado no meio que bem poderia ser um navio. Paulinha se aproxima do chão e dança].

As cenas das conversas cochichadas dois a dois durante as quais dávamos e recebíamos as instruções foram momentos sublimes da proposta.

Ao final Key nos dá duas direções: guardar o que você fez hoje – algo pode acontecer com isso – e pegar para si uma das proposições como feitas e passar a semana com ela. Pode até esquecer isso e vir para cá na semana que vem, mas se quiser pode ir mexendo nisso. Sigo com as cadeiras?