ver

27/02/2012

Eu e o Guilherme a comíamos, o marido assistindo escornado numa poltrona velha de couro marrom se masturbando para os nossos corpos nus sobre o carpete vermelho. Às vezes ele não se masturbava, apenas nos espiava com um olhar que jamais foi incômodo apenas forte. Da primeira vez eu jogava videogame – ela assentou a mão no meu pau, constatou satisfeita sua rijeza, abriu-me o zíper da calça e disse olhando nos meus olhos enfeitiçados agora eu vou fazer uma coisa que ainda mulher alguma te fez e me chupou e eu gozei dois minutos antes de o filho dela voltar da padaria. Na primeira vez em que transamos eu me espantei fortemente com o quanto ela gozava – sua loucura era ter-nos jovens a penetrar-lhe. Éramos para ela uma espécie de fonte da juventude e eu compreendia isso. Mas jamais pude entender o prazer que aquele homem sentia e até hoje isso me confunde. Eu tinha doze anos, jogávamos videogame na casa do moleque sardento que era o filho dela, ela mandou o filhote comprar alguma coisa para o lanche, disse ao marido que fosse para o quarto e fechasse a porta. Ela então me chupou e só vim a entender algum tempo depois que o marido nos olhasse pela fechadura quando pela primeira vez ele colocou um vídeo pornô e insinuou sem dizer sequer uma palavra [ele jamais disse nada] que comêssemos a sua mulher para ele ver.

lagosta

13/02/2012

Hoje quando eu abri a torneira saiu lá de dentro ao invés de água uma libélula que de resto voou e atravessou a fumaça do cigarro, repetindo à minha frente a cena que eu vira muitos anos atrás, um avião de guerra que gira, desce de banda e fura uma enorme nuvem, sem no entanto jamais sair de lá. Lembro como se fosse hoje da sensação que aquilo me causou. Um avião que invade uma nuvem e simplesmente desaparece dentro dela. Anos mais tarde, na aula de química, dividindo o microscópio com a Marcela, que era a menina mais bonita da turma não aos olhos de todos, é claro, manifestei pela primeira vez o hábito que tenho até hoje, de associar as mulheres que desejo às nuvens e a mim o avião. Lembro-me como se fosse agora, da primeira vez que entrei na Marcela, e ainda hoje tenho a perfeita sensação de estar dentro dela, dela e de todas as outras que amei, como se as mulheres da minha vida fossem nuvens concêntricas no interior das quais pairo avião. Mas não é isso. Sem saber, naquele momento eu me dava conta de que nascera para fora dos limites. A cena da nuvem é a primeira lembrança que tenho do meu gosto pela irrealidade.  E isso vem comigo. Certa vez ainda criança, eu me lembro, o professor de canto da escola, que na verdade era filósofo, disse que não havia canto fora da nota, que era impossível cantar lá. Nem quando a gente sonha, eu perguntei, e todo mundo riu e eu fiquei de castigo. Em casa contei o caso a minha mãe, que sugeriu que eu escrevesse uma carta ao professor. Prezado Professor Carlos Eduardo, escrevo esta carta para dizer que o senhor me deve desculpas. Eu não fiz nada de errado. No primeiro dia de aula você disse que as perguntas eram livres e que a curiosidade era a prova da inteligência. Assim, quando você disse hoje durante a aula que nada havia fora da nota, eu me lembrei de um sonho, um sonho em que eu cantava e sentia medo de desafinar e lhe fiz uma pergunta, a que o senhor respondeu grosseiramente punindo não apenas a minha curiosidade como também minha inteligência. Atenciosamente, seu aluno, Jacques de Brito. É evidente que minha mãe deu seu sotaque àquela carta, eu contava então seis anos e mal sabia escrever. Dizem que há um momento primevo do desenvolvimento cerebral humano em que o que não vemos não existe mais. Sumiu! Achou! Sumiu! Achou! É o deslumbre do neném com a magia da morte que vive e torna a morrer. Pois algum mau andamento próprio do meu desenvolvimento cerebral certamente se deu que eu não passei muito bem dessa fase visto que até hoje aquele avião segue enfiado naquela nuvem e eu dentro da Marcela e de todas as outras. O carro que dobra a esquina e desaparece morre. Não sei distinguir o fato do feito e é esse o burro que me tornei e o qual me descobri no dia em que a Marcela me pediu o caderno emprestado para copiar a matéria, no qual encontrou algumas notas em que eu relatava em primeira pessoa histórias que jamais vivera. Ontem, o caminhão de lixo passou e a gente correu atrás. Eu e o Marcio alcançamos o caminhão e os lixeiros deixaram a gente ficar  lá em cima, dando voltas pela cidade com a gente enquanto eles faziam a coleta. Os lixeiros são gente boa e no final eles ainda deixaram a gente na Antônio Carlos e a gente voltou a pé. Marcela me perguntou se era verdade ao que respondi que diferença faz. Naquele dia ela azedou comigo e eu descobri que dentro de mim havia uma coisa da qual eu deveria me proteger, um forte sentido para o que ainda não existe. E passei a me interessar por livros e assim pelas histórias que eu tão naturalmente tomei por verdadeiras. Frente a um confessionário aos doze anos eu disse ao padre que meu pecado devia ter algo a ver com as experiências que eu vinha tendo num laboratório que eu mantinha no porão de casa. Que tipo de experiências. Experiências genéticas, padre, eu preciso fazer um pelicano dar à luz uma lagosta.

cidade

06/02/2012

Mãos afora espalmadas, a confessar o que temem os olhos reconhecer, estes miram o chão. Devagar num pesar que se prolongue do verde ao laranja, é fim de tarde, é o fim. Os jovens corpos estão velhos. É fim de tarde, é o fim nas encostas ensolaradas da ruína. Aqui é preciso entender-se com as paredes, absolvê-las para que caiam em paz, antes e depois de nós. Como isso vaza, água pelo cano quebrado lambe pó e baba fora do enquadramento. Enquanto isso há movimento por entre as molduras insólitas talhadas a golpes de marreta, prenúncio do entulho, preâmbulo da poeira. A água segue deitando baba, e agora os corpos escorrem da janela pela parede. Humanos, frescos e vestidos, fazem da cintura para cima os dentes de baixo de uma boca janela metade decadência, e desaparecem no ocaso por trás do sol poente. Escombros. Um corpo pende do nada, diâmetro de buraco algum. Corpos por acontecer, cabelos pendentes, as mãos carregam pedras nenhuma que se atire, caem que caem os braços. A cidade vela, a gravidade dança. Pedras descem, cabelos sobem, olhos baixos, a poeira ascende. Restam mãos de adeus, água escorrendo e o céu da cidade.