ao robô

16/06/2015

Hoje eu descobri que a robótica, no que se refere à reprodução do movimento corporal humano, encontra-se fadada à era das cavernas. Recentemente, um alto pesquisador demorou três anos para levar um braço robótico humanoide a encher uma taça de água, sem derramar. Apenas um braço. Apenas uma ação. Três anos. Ou seja, os robôs cada vez mais humanoides do cinema, com seus corpos humanoides, suas sensibilidades humanoides, e – principalmente – seu jeito humanoide, esses robôs são absurdamente improváveis no atual [senão eterno] estado em que se encontram as possibilidades de robotizar plenamente a humanidade. Chama a atenção o insuspeitado lugar do movimento corporal no resguardo do humano frente à sua assimilação pela maquinaria robótica. Não há robôs humanos porque nem mesmo braços humanoides isolados de qualquer outra estrutura são capazes de abrir uma garrafa. Robôs não dançam, jamais dançarão. O gesto é o fim da máquina. Os simpáticos robôs do cinema, que agem como nós e assim nos comovem, são improváveis não por conta da irrepetibilidade dos nossos sentimentos, ou da nossa “inteligência”, eles são impossíveis pela irreprodutibilidade da nossa movimentação no espaço. Está no movimento o nosso reduto inalcançável da robótica. Os robôs, que no cinema serão cada vez mais humanamente desenvoltos corporalmente, por meio dos avanços da reprodução de nossos movimentos no âmbito da computação gráfica, esses robôs serão cada vez mais irreais frente às reais possibilidades de virem a existir de fato, senão na tela. São os nossos gestos, portanto, estes por exemplo, que minhas mãos realizam no ar ao passo que falo, e não aquilo que falo, pois o que falo pode ser reproduzido roboticamente e já o é, o conjunto destes gestos que são o movimento manual das minhas palavras, a própria duração destes gestos no tempo e no espaço, estes gestos são o que nos resguarda de um dia nos tornarmos robôs. A inteligência que nos livra da condição da máquina é, pasmemos, aquela que se manifesta em cada gesto, ato, movimento corporal, justamente a nossa inteligência mais “irracional”, nosso próprio corpo.

15/06/2015

Mulher 1: Tudo bem então.

Elas se olham em silêncio. Mulher 1 então tira da bolsa um papel amassado.

Mulher 1 [lendo a lista]: …Fazer supermercado – fósforos, papel higiênico, desinfetante “festa das flores”. Ser uma pessoa adequada. Ter um bebê. Ter um bebê. Tirar carteira de motorista. Conseguir dar o cu. Comprar fósforos. [olha para ela] Ah, eu sabia… Tem umas coisas pessoais aqui no meio, sabe, eu acho que tinha me esquecido…

Mulher 2 [sem graça, mas interessada]: Ah, sim… Eu… Eu acho que tudo bem…

Mulher 1: …Comprar um carro depois de tirar a carteira de habilitação. Estar habilitada. Comprar um bebê para levar no banco de trás do carro. Comprar um banquinho de segurança para o bebê no carro, virar à esquerda numa rua movimentada. Lembrar-se de dar seta e virar à esquerda acreditando que o carro de trás vai parar… [para a Mulher 2São umas coisas mais para eu lembrar a mim mesma, sabe…?

Mulher 2 [interessada]: É, da para notar.

Mulher 1: …Comprar um bebê de cabelo liso, chamar a assistência técnica do filtro, ter um bebê definitivo, não, melhor comprar um cachorro, eles duram menos tempo, mas os cachorros não choram. Dar o cu. Mas eles latem. Financiar uma geladeira com degelo automático… [olha para a outra] Frost free, você sabe.

Mulher 2: Dá para entender.

Mulher 1: …Pesquisar nos anúncios de frost free. Cachorros não choram como bebês. Eles latem. Mas não choram como bebês. [ela começa a chorar] Conhecer o Egito e visitar as pirâmides, pesquisar os pacotes turísticos para outubro. Explodir tudo aquilo. Eles não têm as mãozinhas gordinhas e macias dos bebês. Comprar cilindros plásticos. Explodir todos eles. Consertar o telefone sem fio. Comprar pólvora e gasolina ou óleo diesel. Ligar para a assistente social. Achar 1m de pavio. Dar o cu para o marido. Peróxido de hidrogênio mais acetona, aí sim. Ligar para o bebê. Dar o cu para o bebê. Não, quero dizer, glicerina para o bumbum assado do bebê. Nitroglicerina. Marcar a entrevista. Misturar com movimentos lentos. Comprar um bebê, não, acho que anotei errado, alugar o bebê, não, quero dizer, adotar o bebê. Adotar o bebê, é isso mesmo, acho que me confundi. Comprar a cinta com suporte para os frascos e cilindros e adotar o bebê. Ligar para a carteira de habilitação, viajar para o apartamento, ficar grávida novamente, explodir todos eles, financiar o bebê, tornar-se uma pessoa habilitada. Esperar uma pirâmide do Egito. Acreditar. Encontrar algum fornecedor de peróxido de hidrogênio. Nitroglicerina. Ver a pirâmide do Egito crescer na sua barriga. Hipoglós mais glicerina. [para a Mulher 2Ai, me desculpe, tem umas anotações confusas, eu… Às vezes eu me confundo um pouco.

[Mantenha fora do alcance do bebê, Silvia Gomez]

artistas

13/06/2015

Artistas criam e preservam mitos que tornam suas obras influentes […] Como deidades competitivas, os artistas precisam hoje agir de modo a conquistar um séquito fiel […] embora o mundo da arte se mostre favorável ao “diálogo”, ele evita perguntas constrangedoras e se refugia na perplexidade sempre que lhe parece oportuno […] A maior parte da literatura sobre artistas se concentra em cada um individualmente, em monografias discretas, ou, quando vários artistas são abordados no mesmo volume, eles são divididos em perfis autônomos. Mesmo quando exposições coletivas agrupam artistas de modo interessante, o protocolo para os textos do catálogo é comparar suas obras, não seus autores. Na verdade, antes de mais nada, o mundo da arte gosta de isolar um “gênio” […] um grupo de profissionais que é cada vez mais exposto mundialmente como os indivíduos por excelência, dotados de liberdades invejáveis […] Artistas criam e preservam mitos que tornam suas obras influentes […] Como deidades competitivas, os artistas precisam hoje agir de modo a conquistar um séquito fiel […] embora o mundo da arte se mostre favorável ao “diálogo”, ele evita perguntas constrangedoras e se refugia na perplexidade sempre que lhe parece oportuno […] A maior parte da literatura sobre artistas se concentra em cada um individualmente, em monografias discretas, ou, quando vários artistas são abordados no mesmo volume, eles são divididos em perfis autônomos. Mesmo quando exposições coletivas agrupam artistas de modo interessante, o protocolo para os textos do catálogo é comparar suas obras, não seus autores. Na verdade, antes de mais nada, o mundo da arte gosta de isolar um “gênio”.

[Introdução de O que é um artista, de Sarah Thornton, escritora e socióloga da arte]

volta

10/06/2015

Foram muitos dias, meses longe desta coisa. E de repente ela me retém de volta. Escrever a vida. Tenho a impressão de que a volta marca o fim de uma tristeza. Afinal, escrever é uma nova alegria. Ou então, marca o recomeço de um velho novo jeito de ser triste. Afinal, escrever é sempre triste. Mas eu não, ou quase não, por isso insisto em tentar fazer disto algo alegre. E por isso te envolvo nisto, por isso te trago para cá. Eu quero algo de ti, quero que notes a diferença do ar desta leitura que fazes. Eu sinto que estou aí. Quase sei que estou…. Bom, então é isto, eu, meio, fim, de volta. E Hoje, o texto dramatúrgico que eu vinha escrevendo, aquela criatura, bom, hoje, rs, caiu. Aquela montoeira, aquele burilado sem-sentido, em nada narrativo, guardado à intimidade de um cotidiano ora perdido, vai agora, finalmente, reencontrar sua forma plena.

Uma escrivaninha, um computador e uma cadeira. Um homem adentra a cena de olhos fechados. Ele traja terno apesar de estar descalço. Tudo indica que estejamos num templo em que se transcende pelas solas dos pés. Ele então retira dos bolsos uma venda, imaginária, e com ela se venda. Assim que o faz seus olhos se abrem.

Hoje eu dei uma olhada nos editais do ProAC. E tive uma ideia mirabolante para o “Edital Livro de Artista”. Tu lembras do que era meu primeiro projeto de mestrado? Era a proposta de um diário etnográfico do próprio mestrado, algo fundamentado no surrealismo etnográfico da Africa Fantasma, de Leiris. A ideia era propor um objeto de estudo que fosse sendo construído ao longo do próprio processo. Ou seja, o processo enquanto objeto. Não emplacou, tu lembras. Claro, um projeto sem objeto, onde já se viu. Pois agora eu tenho já constituído o objeto desse trabalho etnográfico que eu venho realizando junto à arte contemporânea, o que pode muito bem se desdobrar numa proposta de um “livro de artista” [nome esdrúxulo, sim] enquanto resultado de um processo etnográfico junto a um conjunto de artistas visuais cujas obras farão parte do objeto final livro. Eu posso inclusive começar o projeto por alguns dos artistas de quem me aproximei ao longo de MONTE. Saulo, Filipe, Júlia, Flora, Theo. Posso incluir o Estevan como diagramador dessa coisa…. Bom, vamos deixar isso decantar.