11/05/2016

Núcleo Mirada. Praça Júlio Prestes. Chão vermelho. Cinco mulheres estão prestes a marchar ao som da cidade. Ritmo. Trem. Pernas. Progresso.

Coisas móveis. Outras não tão. Coisas. Vivas outras nem tanto. Árvores. Estátuas. Estaturas. Postes de iluminação. Cachorros. Pombos. Meu escritório é na praça. A guarda civil atrás de mim. Elas calçam botas de operário chão de fábrica.

Vermelho gago. Agora.

É ensaio, mas já está valendo. Ensaio. O que não é? Processo. Um saco plástico voa ao vento. Um homem passa a olhar para mim. Olha para mim. O que sentirá?

Isto é o quê? É um curso? Algo que a gente pode utilizar? Utilizar? Ele diz que é um curioso, um ambicioso. O quê?

Outro saco voa ao vento. Coisas ao vento. Voam. As leves, as pesadas não. Policiais. Nas duas laterais da praça. O que é isso aí, meu irmão? Você faz documento? Faço. Uma frase é tudo que alguém precisa para começar. Policiais passam. Me olham. Todos olham para cá. Um sujeito sentado à máquina no meio da praça. Chama atenção. Atenção aos movimentos do tai chi. Elas vão flutuar. Daqui a pouco. Levantar voo e flutuar enquanto a estátua insiste em ficar lá.

Marcha. Quartel degenerado. Passa por mim um sujeito que já vi, com quem já troquei palavras. Ele olha. Tempo de reconhecer. Um sorriso. Lá uma.

Obra de ferro. Concretista. Sangue concreto. Mais um sorriso. De classe. What’s going on here? Às vezes um cheiro de cocô humano. Na semana passada um homem me disse que eu só estava sentado aqui porque era gringo. Isto daqui está um lixo, ele disse. Agora um outro me diz, com uma cara zombeteira, isso é coisa do passado. Tem.

Início a marcha. Em minha direção. Passam por mim. O fluxo de pessoas aumenta. Um homem passa alisando o bigode com uma gilete inócua. Ele alisa o bigode e cheira a gilete, alisa o bigode e cheira a gilete. Um pombo. Um casal quer tirar uma foto minha. Eles se dizem felizes por estarmos aqui, a preservar a cultura. É isso aí, guerreiro. As pessoas me saúdam. E aí, escrivão? Uma policial de batom bem vermelho. Óculos escuros. Um avião particular cruza o céu. Elas vão começar a marcha. Pequeno. Marcando. Escreve meu nome aí. Uma mulher me imita numa máquina invisível. Tem início a marcha. Hei! Um homem de olhar profundo se aproxima. Há muito tempo eu não vejo uma destas. Hei! Vai e volta. Em evidência o caminhar de todos. O caminhar. Hei! Um homem feminil fuma ao passo que nos olha, depois atira longe o cigarro. Uma mulher se alinha com elas. Hei! O fluxo de pessoas a passar aumenta. Muitas. Muitos. A caminho do trabalho. Hei! À frente. Em cima. À frente. Perto. É teatro isso? Mais ou menos. Um homem passa a cantar. Elas estacam. O vento vibra as membranas de algodão e fustiga as letras recém impressas na folha de papel. O som da máquina. O som da bengala de um homem que parece não entender nada. Ele olha. Difuso. Para os policiais. Que passam a três.

Hei! Homens de uniforme. Hei! O fluxo das pessoas impõe uma dinâmica. Cheio. Vazio. Denso. Espaçado. O som dos automóveis, o som do rádio dos policiais. O mato a meia altura da praça. O fluxo se intensifica. O trem acaba de descarregar pessoas. Tempos em tempo. Hei!

Desconjunta e volta. Desconjunta, gira. Hei! E volta. Um homem baixo, atarracado, passa bem perto de mim. Elas se vão a marchar. Ao longe grafites alegres nas paredes. Um ônibus com os dizeres Missão Belém. Pela praça toda a gente a marchar. E a estátua lá, parada, num gesto eterno. Pedra. Tempo que sobe com o subir das pernas.

Uma rabiola de papagaio sacode ao vento pregada num poste de iluminação. Sacos plásticos passam por nós a carregar pessoas com coisas dentro. E me olham. Pessoas de todos os tipos, algumas mais imediatas, outras menos. Uma sombra ondulante lembra uma chama em negativo. O mato a crescer agora. Na praça. É teatro. Mais ou menos.

Muitas coisas passam por nós dentro de sacos plásticos. Elas estão de mãos dadas? A boa distância? Pedra. Tempo. O corpo sentado a escrever que os ísquios lhe doem e o tronco encurta. Rola? Eu acho que rola. Um sorriso banguela. Plim! O som do fim da linha. Plim! Simpáticas agentes de saúde passam acompanhadas de figuras frágeis. Parecem doentes. Uma magreza horrível. Um homem assobia. Prostitutas de rua? Do chão da rua. Cumprindo seu duro dever e protegendo o seu amor. E nossas vidas. Cantarolo a letra da canção. Os policiais. Essa máquina aí é mais velha que a minha avó. Pessoas me cumprimentam como se me conhecessem. Um homem despachado passa a cantar. Ó, aí sim, hein. Melhor lugar de escrever. Mais e mais coisas. Passam, semiescondidas no interior de sacos plásticos. Puxa, isso é do meu tempo. Isso sim é ser um bom datilógrafo. O mundo moderno de hoje em dia não me encanta. A carta é tão mais sincera. Pelo celular não é tão sincero. Eu nunca mais vi uma destas.

Um pombo passa bem perto. Um Aladim passa por nós em um tapete voador. Sério. Real. Surreal. Ao passo que elas se perguntam se podem dilatar o tempo um carro da guarda civil passa vagarosamente. Hei! Marcha. Homens sorriem. Hei! Depois nós é que somos os noia. Meu amigo, estamos em 2016. Datilografia? O projeto é precário? É isso? Hei! Um helicóptero sobrevoa. Marcha. Duas mulheres sentadas ali ao lado parecem comentar o que estão a ver. O que estamos a ver? Desconjunta, gira, volta, para, alinha. Hei! Marcha. As botas batem pretas em uníssono no chão. Tosse. Bocejo. Suspensão. Um silêncio entre aspas. Tudo suspenso. Tomo um baita susto quando a Karime grita. Hei! Sol. Sombra. Ou quase. Liana é a primeira a adentrar o sol. Hei! Desconjunta, gira e reorganiza. Hei! Elas vêm sisudas na direção do texto. Concentração para lançar a perna que voa e adianta o corpo junto. Um homem passa, a cabeça para um lado e para o outro, em desaprovação. Algumas pessoas se aproximam, como se viessem me dizer algo, mas nada dizem. Hei! Vêm elas. Em direção ao texto. Alguém canta Raul Seixas ao longe. Tente outra vez. Multidão de sacos plásticos. Passa pela máquina de datilografar. Duas mulheres. Uma sorri a outra não. Aquelas duas seguem sentadas lá. Hei! Outras duas seguram a mão de uma garotinha. Desconjunta, gira, reorganiza. Hei! Duas garotinhas passam de mãos dadas. Estão espantadas com o que veem. O quê? Escreve meu livro. Bom dia. É teatro? Tem vaga? Passa um cego atrás de mim. As pessoas pedem explicação. Explicação? Um homem começa a marchar e girar com elas. Outro homem se recolhe a um canto para cuspir na parede. Elas agora estão paradas. Miram o longe. O nada. Suspensão. Descanso. Tensão. Helicóptero. Hei! As botas batem pretas no chão. Hei! Meus ísquios doem. Banco duro. Sentado. Sombra para o sol. Para a sombra. Os policiais olham. Confusos. Alguém lá longe grita. Hei! O que é isso? Sorria, você está sendo descrito. Hei! Vocês têm um objetivo? Vocês são uma ONG? Pergunto a uma assistente social o que ela faz aqui. Ela e a colega trabalham com usuários de craque. Redução de danos. Passa o Aladim outra vez sobre o tapete voador com controle remoto. É só um delay do vento. Um pombo em sobrevoo. Cinza azul em degradê. É o metatarso que vai primeiro ao chão, não o calcanhar. Mas sem fazer ponta. Solta mesmo em cima da perna. Liana me pergunta se eu quero uma bota também. Bota e boné. Revolução. Trabalha bem, hein, negão. Você é louco. Um ônibus, Rápido Perus, passa por nós. Garotos põem as cabeças para fora da janela e dizem coisas que eu não entendo. A estátua insiste em seu ego. Gesto. Pedra. As pessoas me cumprimentam. Tem algo neste datilografar o ar livre. Respeito? Nostalgia? Algo no olhar das pessoas.

Fazer filho para encher cadeia? Melhor fumar maconha, cheirar cocaína, fumar craque, do que puxar uma arma. Ele não se parece com o que diz. E demonstra um prazer especial em realizar os gestos de quem maneja uma pistola. O prazer de fingir. Melhor do que atirar? Você é jornalista? Não, sou usuário. Lá vem o homem bomba. As pessoas começam a se repetir. Um mesmo homem que foi agora vem. Agora volta. Quatro policiais passam bem perto de mim, um deles me cumprimenta, sutil, mas firmemente, tipo policial.

Hei! O sol já está pela metade do espaço. Você é antigo, hein, companheiro. Essa máquina funciona? Um homem antigo. Sentado frente a um objeto antigo. A escrever coisas antigas a respeito de coisas leves que voam com o vento. Agora. Gestos antigos para corpos breves. Os ritmos. Das pessoas. Compõem. O ritmo delas. Um homem bem sujo para ao meu lado. Observa. Este objeto. Pernões acompanhados de carões vêm em direção a nós, eu máquina, texto e homem sujo. Marcham agora com toda a força. O efeito é outro. O espaço adensa. Ao mesmo tempo em que esvazia de gente. Cheio vazio de olhar. Hei! Você escreve o que vem à sua cabeça?

Com força as pessoas olham de outro jeito. Você preenche papel? Sim, literalmente. Algumas pessoas passam em estado, cheiro e consistência deploráveis. Pessoas em decomposição. Alguém lá longe filma o que estamos a fazer. Três jovens com carrinhos cheios de mercadoria observam. O que veem? Dois se vão, um fica. Dois esperam, um vai. Vem, Sofia, saí daí! A menina se mete no meio da marcha. Que física é esta? Quântica. Um senhor curioso. Diz coisas de modo veloz, como se dissesse duas, três palavras ao mesmo tempo, sobrepostas. Me chama de professor. E se mexe. E faz gestos. E poses. E então faz uma abertura. Ele quer saber se eu o acho parado ou em movimento. Adriane. Ela já tinha vindo falar comigo, veio novamente. Eu não sei quem vocês são, eu não sei o que vocês fazem, mas tem uma luz.

***

Começo antes do começo. Elas se aquecem. A máquina de escrever dançarinas a marchar na praça já chama atenção. Do arco da velha, uma mulher diz. Hoje o carro da guarda civil está longe, lá. Eu sempre quis ter uma máquina de escrever, alguém diz. Hoje o céu é outro, mas a estátua segue lá, firme em pedrada pose. Crianças brincam longe, se equilibram sobre os aros de prender bicicleta. Três policiais passam. De lá para cá, tudo lá. Uma mulher de óculos escuros a olhar-nos. A olhá-las. Ela nos observa, se senta, à luz, de fim, de dia. Hoje, tudo o que elas fazem adere ao espetáculo medonho de ontem na câmara dos deputados. Dois policiais ao fundo. O que pensarão? O que verão? Um garotinho passa por nós, correndo, feliz. A mulher se vai, se foi. O mato da praça segue alto, descuidado ao som da sirene de um carro de polícia. Um cara me cumprimenta, já me acostumei. Um Dia.

Emblemático. Olha a coreografia da hora aí, alguém diz. Viverá aqui? Na rua? Os assistentes sociais a circular.

A máquina a céu aberto a impressão que causa. Uma cordialidade. Um homem grande, forte, vestido de preto, ao celular, passa por mim, e naturalmente me cumprimenta. Outro alguém me sorri. Um grupelho de crianças passa por mim, uma garotinha me dá tchau. Será que já viram uma destas antes? Da hora essa máquina de escrever, alguém diz. Elas se preparam para começar. Alguém as fotografa. Um encapuzado passa ao longe. Prédios duros. Árvores moles. Cabeças errantes. Contornam o céu. Gente que marcha, por natureza segunda. Um cão. Vaga. Mais cedo um pombo bebia água. É uma cadela, na verdade. E seu olfato está interessado no conteúdo de uma mala a atravessar um homem pela praça. Uma criança num carrinho de bebê. Há menos sacolas plásticas no fim da tarde. Você é escritor? Me pergunta uma assistente social. Elas ainda não começaram. Já faz um tempo que estou aqui sentado a escrever este lugar. O que vai acontecer aqui? Um homem me pede dinheiro para completar a passagem. Elas se abraçam, num círculo ritual. Os objetos que voam ao vento. Os que não voam. Calças jeans. Botas pretas. Silêncio. Karime desce a escada suavemente. Hei! Começou. Hei! Do fundo da garganta. As pessoas param a olhar. Pernas se lançam a noventa graus. Gira, desconjunta, gira, reorganiza. Elas olham na minha cara e gritam. Hei! Alguém a imitar o movimento delas. Aos berros de uma maritaca se sobrepõe a sirene de um caminhão do corpo de bombeiros. O papel se agita com o vento. Quer voar. A máquina é que não deixa. Gira, desconjunta, gira, reorganiza. Liana leva uma câmera atada à cintura. Olho na barriga. Hei! Os pés vão lá no alto. A respiração ofegante da Maryah, que estacou ao meu lado. Dois cigarros acesos em paralelo no espaço da minha visão. Outros três policiais. O que pensarão? O que verão nestas cinco mulheres a marchar o bater forte do pé no chão? Bacias. Quadris. Elas afligem o espaço, alteram o que vem a ser o caminhar das pessoas. Impressão de que todos marcham agora. Hoje as pessoas parecem mais impressionadas com o que veem, afinal hoje elas fazem mais forte do que nunca. Passa um grupo de homens vestidos como maritacas. Verdes uniformes, detalhes em amarelo. Nossa, alguém diz. Este é o primeiro sintoma, outro diz. Sintoma? Ao largo o som de uma música gospel que se solta da carroça de uma catadora de papel. Jesus. Mais uma pessoa a imitar a marcha delas. Hei! Em minha direção. Novo som de sirene. Em algum lugar algo pega fogo. Um sujeito de bicicleta cruza veloz o espaço, num salto. Elas agora emparelhadas. Estacadas. Como a estátua que insiste em ficar lá. Um garoto passa a chutar o ar. A marcha é retomada. Hei! Do fundo da goela. Hei! Definitivamente, o fim da tarde não é o horário das sacolas plásticas. Pela manhã eis que vão. De noite eis que não voltam. Outra sirene. Sim, algo pega fogo lá fora. Os insurgentes atearam fogo à prefeitura. Ao congresso. É inflamável o banco central? Felipe lá bem longe, nos vê. Também gosto destas coisas vistas de longe. A iluminação pública a dar sinal de vida. Vai acendendo aos poucos. Azul. Verde. Amarelo. Luz do céu. Luz dos postes. As luzes de um hotel, dos faróis, dos semáforos, as luzes de freio. Elas ainda não sabem que a gravidade desta marcha está a entusiasmar telepaticamente acontecimentos outros. Elas não sabem que estão a conjurar forças invisíveis. Um senhor avista a marcha e faz a saudação nazista. Um casal se senta para vê-las. Um homem passa com uma cara curiosa. Depois também uma mulher. A força gravitacional da máquina de escrever altera as rotas das pessoas. E enquanto isso, algo acontece e elas não sabem. Aqueles mesmos três rapazes da semana passada. Mais uma vez param os três, com seus carrinhos cheios de mercadoria, a olhar para nós. Hei! Neste momento, os bombeiros tentam apagar o fogo. Uma mulher está fascinada pela marcha. Olha, sorri, quer. Uma fronteira invisível a impede. Ela caminha de um lado para o outro. Olha, sorri, e não sorri. Agora está a contar quantas são. Serão cinco? Alguém berra ao fundo, parece se comunicar. Uma carreta cheia de lixo. Hei! Hei! Alguém passa a olhar a máquina. Outra sirene. Anoitece. Devem ser umas seis e vinte da noite. Uma mulher corre para pegar o trem. Um saco plástico, finalmente, um sobrevivente, adentra a cena, para ao lado de uma pena de pombo, pausa, e segue seu caminho. Objetos que voam com o vento. Lágrimas voam com o vento? Gira, desconjunta, reorganiza. O fim se aproxima. Elas se alinham, em paralelo. Arfantes. Descansam. Cansadas. De costas, Maryah desaba sob o brilho das luzes artificiais. O vermelho das sirenes a refletir nas superfícies. O lusco fusco, a pouca luz de todas as luzes. Outra sirene. O que acontecerá lá fora? O que fizemos sem saber que o fazíamos? À noite a estátua é só um pedregulho. É forte, esse final, final, esse final. Elas sobem os degraus, um a um. Um olhar de bigode. O suor nas costas delas. Maryah desaba outra vez. Meus ísquios reclamam. Elas caminham, adentrando lentamente o outro lado, escuro, da praça. Aos poucos elas vão aderindo à escuridão. Caminhando até sumir no espaço.

A única que ainda vejo é Liana, que tira as botas e as oferece às pessoas que passam. Toma estas botas com a qual acabo de marchar.

Pela desordem que se dá em algum outro lugar. Tenho certeza. Eu te ofereço estas botas. Toma, moço, toma estas botas com as quais acabo de marchar pela desordem. Oferta sem procura. Arte? Está acabando, vai acabar. O que fará esta mulher que nos oferece suas botas? Chris reaparece e passa por ela. Diz algo que não ouço. Ninguém quer as botas. As pessoas passam reto. Uma mulher quase as aceita, mas não. Liana ali, parada, no mesmo lugar. Toma, moça, toma esta desordem. Um filme. Moça, toma. Uma mulher então aceita as botas e a desordem as leva consigo. Acabou. Liana se senta no chão, desbotada. Parece acabada. Acabou.