acontecimento
19/08/2016
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Poucas palavras para muito conhecimento. A comunicação entra em jogo. O que é compreender. Como. Eu percebo difuso o japonês que se move feito água.
Entender em se tornar. Aprender em comover. Butô aos quinze anos. Hoje vive em Nova Iorque.
Pés. Pés. Foco nos pés. Os pés em qualquer direção. Caminhadas alteradas pelo impulso causado por um gesto que vai das mãos aos cotovelos aos ombros numa cadeia de movimento que transforma todo o corpo. Um passeio diferente.
Rosto. Rosto. Foco no rosto. Como o rosto altera sua feição em correspondência com o corpo. Poesia. Faz uma caminhada, para, olha, imagina e observa a paisagem invisível.
Sensação de espaço. Se abrindo. O espaço me adentra é meu corpo. Dentro do turbilhão reúno o mundo em mim e viro coisa que vira coisa. Eu te proponho o que eu descobrir e formular aqui agora. Ideia que só muda. Caminho. Muda. Muda. Muda.
Fundo preto. Umas trinta pessoas. Dois grupos. O primeiro olha o segundo rolar lento no chão a proposta do Kota, pele como meio de transporte pela superfície afora. Lento. Lento. Lento.
Fundo preto. Umas trinta pessoas. Troca. Quem olhava agora rola. Kota acresce novo caminho, o corpo céu e terra. Kota vai para o chão e demonstra. Caravelas em mar calmo, o corpo mar rola mãos e pés pelas ondas, devagar.
O contato por meio, o olho por tato, Kota passeia a pele pelas superfícies das coisas. O corpo e a coisa em correspondência. A pele a dobrar o mundo em interação imediata com a porta, a escada, o extintor de incêndio, a caixa de som, qualquer coisa é boa.
Dois a dois, você de olhos fechados eu toco com o dedo seu corpo em pontos diferentes. Sente o que cada ponto te acontece. A sensação que traz. Diz o que te vier à cabeça. O dedo toca a memória sai uma praia correndo com água até o joelho um marimbondo quase me picando criança tomando chá um saco de sal grosso guarda-chuva pendurado na escada saindo da piscina.
Agora sem falar. Dois a dois, você de olhos fechados eu toco com o dedo seu corpo em pontos diferentes. O toque instaura um movimento que prossegue por algumas voltas antes de cessar e esperar pelo próximo toque. Eu te toco você dança.
Agora caminhando. Dois a dois, você caminhando eu toco com o dedo seu corpo em pontos diferentes. A caminhada, o toque, a dança, em composição. Um toque para andar dançando um corpo funcionando poesia.
E depois é você quem me toca.
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Agora a pele do verbo a rolar pelo chão.
Alguma pressão, talvez uma história, talvez seja bom, amontoar vozes no espaço você pega trem como é o seu quarto não tenho preconceito tenho nunca tive nunca quebrei nada de andar na casa da minha avó eu gosto mais ou menos muito adoro dançar fazer tapioca com ovo enquanto fumo um cigarro de vez em quando na festa junina meu sobrinho uma ilha brincava quebrei de suco o braço de laranja.
Alguém estilhaça uma risada. Alguém adensa o ar de sonho.
Kota anda pelo teatro. Procura alguma coisa. Encontra. Outra. A menor ideia do que vem a seguir. O significado racha, você acha que entendeu, era exatamente isso, só que ao contrário. E vem de onde nem veio. Mal-entendido amado.
Então você berra, se estrebucha com gosto, abre a porta e um paredão de gente te espera rente. Berra, se estrebucha com gosto, abre a porta e estão todos sentados na plateia. Abre a porta e estão todos amalgamados no canto do palco. Abre a porta e um pelotão de gente te espera à beira. Berra, se estrebucha, abre a porta e estão todos no chão a te olhar feito salamandras. Abre a porta e estão todos escondidos atrás da cortina com as cabeças de fora. Abre a porta e não tem ninguém, a não ser eu.
Lento longe perto veloz. Amanhã partimos daqui.
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Uma volta no quarteirão, adentro o teatro momentos antes do início da noite, um silêncio instaurando Kota, deitado no chão, olhos abertos a meditar.
[À tarde subir e descer deslocavam acontecimentos sem esforço, sem grandes ignições musculares, corpos ondeavam movimentações escorridas.
À tarde a inscrição simples de uma coreografia, e quando já a povoávamos, Kota lhe acresce uma extensão: aos cem anos de idade. Aconteci, a pele do meu rosto, enruguei, corporifiquei minha avó. Depois uma felicidade dela]
No tempo do silêncio as pessoas chegando aos poucos.
Colombiano atriz artista visual migrante bailarina cineasta florista músico dançarina ator arquiteta dançarino escritor gesto cultura.
O lugar do lugar, a modulação das ligações, as camadas que nos compõem, a experiência de nossas relações a alterar nossos corpos.
E então você bate o pé no chão com força, se estrebucha com gosto, apronta a gritaria danada, abre a porta e uma diagonal um paredão de mil abraçados um semicírculo de leões vorazes uma bola de gente amontoada olhando na direção de antigas composições estatuárias de pessoas no espaço de ontem, entrando agora em movimento, a evolução prática da imaginação geral, um corredor polonês a bater palmas, para o bem da sua intensidade, todos correm, na direção da sua presença, querem te tocar, é por aqui é por aqui, o espaço atormentado pela insistência, é por aqui, de longe gritam de perto falam é por aqui, é por aqui, trinta pessoas a lançar bolas imaginárias, sobre você, todos se levantam do chão e passam, a te imitar a te alvejar com intimidades profanas, já pensei na minha mãe morta, e curti, trinta pessoas a te olhar, o mais profundo silêncio, a te cortejar, acintosamente, maravilhoso pego fácil você é muito lindo você é gato mesmo delícia aonde você vai, surpresa!, ritmo coro em dança orquestra, surpresa!, você se atrasa, surpresa!, está tudo bem vai dar tudo certo está tudo bem vai dar tudo certo e todos morrem, quando você chega, todos tristes, quando você entra, todos a gargalhar, você sai correndo, do teatro, vai embora e não se esquece nunca da sensação de abrir a porta.
Key se senta ao meu lado, vou descansar um pouco, estou exausta.
Agora pessoas em movimento a falar inspiradas pelo vento do que veem. Kota manifesta a proposta o corpo diz tudo. Em palavras se entende menos a improvisação total de um agora, você propõe, qualquer um adere, a isto aquilo sem certo errado sem ou. O que é falar Kota para você. As cores rápidas, o gosto caos, a textura avalanche.
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Sesc Santo Amaro, Kota Yamasaki.
[Ontem eu não fiquei para a noite. Fui embora. Estranho. Saída brusca. À tarde uma proposta teatral que mal entendi, fui embora pensando, “eu não sei fazer teatro”. E à noite dei uma péssima aula e fui dormir estranho. E assim cheguei aqui hoje, mas passou, e ficou uma qualidade de presença, um relaxamento, uma tranquilidade do tipo, bom, que se dane, qualquer coisa é boa, e quando Kota retomar o teatro-dança-ghost walk eu já serei outro afim].
Larga a noite de hoje começa assim, vinte e três pessoas de pé para o chão, uma parte deixa cair, um braço, e o corpo todo segue o impulso, flutuando o espaço não pensa não pensa não pensa caminha adiante de um jeito em marcha ré de outro, um barco de frente um sabre de costas, e vai mudando, a paisagem, é importante.
E então a proposta, dançarmos por uma hora sem parar, ao impulso intensivo de music for 18 musicians.
Medo, será que eu dou conta disto, parece que vai ser uma grande história que se contará sozinha, uma experiência encantada, uma hora, mesmo, a quantidade de pessoas desgarrando energia […]
Zonas de velocidade, zonas de lentidão, um desafio mental, às vezes dá certo às vezes não, transformar energia em picos e picos de altos e baixos quase zero, coisas inimagináveis, memórias de experiências passadas, passando, coisas, momentos, pessoas de outras épocas em meio à impressão de que meus pés ganharam vida e é isso o que modifica a paisagem, de repente, pelas frestas do movimento intenso da pequena multidão dançante três figurinhas em bem lento trio, e o cansaço vai atingindo latitudes a partir das quais já não há cansaço, no começo é racional, depois solta, e há momentos em que eu não vejo mais pessoas, apenas fluxo de energia que me pega e perde o sujeito, vira massa, mesmo, paisagem que sonha muda entre a pele e o espaço, um borrão, parece que vai se esgotar quando outra coisa surge, surpresa […]
O que pode a água […]
Há quanto tempo dançando sem parar esta música, é melhor ouvir para ter uma ideia, descobrir começos para um novo tipo de apoio a partir do qual eu não saiba nada sobre o que vai acontecer agora, e passa um tempo muda, tudo, o jeito de pensar […]
Um africano, uma asiática, uma latino-americana, muita coisa que eu já conheço agora no meu corpo de outro jeito, o tempo e depois o espaço e tudo mais, o cansaço me faz ver o comum por trás da sensação de que o som vem do chão e são meus pés que ouvem, gente virando música, metonímias mais que metáforas, é bom dançar, às vezes demora a perceber, mas são deliciosas as situações, os encontros, de repente eu não me julgo mais, é libertador, habitar vibrações, virar melodia, ritmo, uma grande viagem […]
Alguém convida o etnógrafo a dançar, mas ele não vai, não deve, por mais que queira se ensopar de suor, se descabelar, ficar vermelho, úmido, bufante, quando tudo começa a ficar mais lento, mais espaçado […]
Cansaço, muito, mente, relaxar é dançar a paisagem são as pessoas, algumas mais frequentes, e eu vejo a mudança nelas, e isso vai me modificando, e às danças todas, que agora são regidas pelo mesmo princípio que se mostra – pá! – de uma vez, dançar por dançar, um prazer, sensação de que o fim é o começo […]
Acabou.
Chão. Dor no quadril.
Apenas uma pessoa segue em movimento, vocês são doidos, parar assim desse jeito, de uma hora para outra.
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Luiz Fuganti, o que pode um corpo.
Há dois tipos de insatisfeitos, há os ressentidos, impotentes, jamais preenchíveis, incuráveis, os padres, que dizem que há uma insuficiência que só se completa no sobrenatural. Até mesmo ateus, anarquistas, budistas, se esquecem que a potência não está em função de nada. Acreditam em finalidade, origem.
A corporeidade é a realidade infinita e autônoma do tornar-se. O corpo nada deve ao espírito. Azedo é o encontro entre o limão e a pessoa, não o limão em si. Julgamos com nossas afecções.
Para o segundo tipo de insatisfeito, mais raro, não se rende, a forma jamais é campo de acabamento e toda perfeição é falsa. Rebaixar-se é perder o tempo do acontecimento, é servir à consciência, retardada, vem sempre depois. É preciso um certo olhar de caranguejo. Só quem não tem presente se contenta com o futuro.
O efeito do Estado é desqualificar o corpo, que só interessa para ser submetido a ideais. A corporeidade corrompe tudo o que pertence ao Estado, pois a corporeidade, impotente para ser, é devir. Platão foi um idealista. A dança é acontecimento. Habitar algo de dança é habitar algo em movimento de devir o que acontece na duração de um fluxo. O presente do tempo imediato, não do tempo representado. Pensar não tem nada a ver com consciência.
Quem de nós pode levar a experiência cotidiana a sério?
Onde quer que haja sociedade com Estado haverá uma desqualificação do corpo. Por isso o primeiro insatisfeito, o ressentido, se sente injustiçado, porque perdeu o tempo presente da sua própria vida, está sempre a perder o acontecimento. Por isso ele quer recompensa.
Que movimento? Que tempo? Fazemos um uso ordinário e generalista da ideia de pensamento. O pensamento não é a linguagem, esta o que faz é concretizar o pensamento, é esculpi-lo. A palavra não deve monopolizar o lugar do pensamento. Os budistas dizem não ao pensar, eu digo não à tagarelice. Pensamento não é tagarelice, não é imagem, não é consciência.
A queda existe, não o pecado original. Sigamos a intuição dos anjos, pensemos um pensamento que vai direto ao objeto, sem representação, sem mediação. O ideal é coisa impotente para mudar. O Estado é aparelho de captura, rebaixa, sequestra, despotencializa vidas.
O ser é imanente e a linguagem deve estar plena de dança. A linguagem é só um acabamento do pensamento. O segundo insatisfeito, raro, não crê em falta, sabe que perfeita é a potência, e a potência o quê? Faz criar. A organização é efeito e não um rebanho ressentido.
Guerra aos órgãos capturados. O órgão é intensidade, não função. O ouvido é fabricado ao ser invadido por matéria sonora. O olho é fabricado ao ser invadido por matéria luminosa. O movimento-recompensa, o movimento-função, tudo isso é o ó. Trabalhemos pela intensividade. A esquerda faz isso? Não quando introjeta os aguilhões do ideal ocidental e os passa para frente, Deus, Homem, Natureza. Ideais que roubam o acontecimento da vida. Aliás, Deus, esse ladrão.
Corpo e pensamento, termos diferentes para o mesmo significado. Sob um regime de luz: o movimento. Do que a gente se alimenta? Do olhar do outro? Satisfaz? O primeiro insatisfeito, o ressentido, para sempre endividado, perfeição inalcançável, busca um prêmio, um reconhecimento. Artistas também se deixam levar por isso.
O corpo não precisa de autorização do espírito, o juízo de Deus já está dentro do corpo. Com ele você pode fazer tudo sem discursar. A não ser que seu outro seja um crente na finalidade, aí você será acusado de desonestidade. Já se seu outro é intensidade, aí haverá encontro honesto, a si enquanto potência – mesmo que haja excesso!
Há uma humildade que é triste. Qual humildade? Deixe de ser arrogante com seu estado de corpo, coloque-se em movimento. No campo da intensidade eu não preciso ser humilde o suficiente para ser vaidoso.
Destreza sem acontecimento é só preenchimento de forma, o pianista virtuose é o ó. Ao artista virtuose nada acontece, ele apenas se empodera da técnica e entorpece o meio. A nós criadores o que importa a felicidade? A potência é um contínuo intensivo e o corpo se quebra frente à intensidade.
O Estado é um organismo social que se apodera do corpo. Com o nosso consentimento, estamos fadados a ser e a enxergar apenas forma, figura, estado.
Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima, com esse trecho todo mundo pira. De reconhecer a queda ninguém quer saber. É preciso apreender o imperceptível, a duração de cada gesto, de cada enunciado. O tempo que o açúcar leva para se dissolver na água. A espera tem espessura, consistência incapturável.
Uma virtude é melhor que duas, três, quatro. Pois uma virtude bem investida acaba encampando as demais. Nietzsche fala em disjunção inclusiva. Não é preciso se ressentir desse investimento num fito, pois no limite ele se conecta aos demais.
Uma indigestão psíquica é o que está a tomar conta de nossas vidas, essa visão ressentida. A moral é física e metafísica. Acorda! Para o que você sente, consente. Que tipo de presença te habita? Acorda para a dança! Há uma queda que interessa, a de uma subjetividade instaurada por um buraco.
O corpo cria realidade ao nível da essência. O corpo sem órgãos é o corpo da potência. O ideal é uma doença. Sem acontecimento as pessoas buscam a forma, se tornam prisioneiras do Estado. Deixam-se capturar. O primeiro perigo, o medo. O medo, depois a clareza, depois o poder e finalmente o cansaço: os quatro perigos enfrentados pelo guerreiro. Natureza naturada, natureza naturante.
Qual a queda que não interessa? A da paixão tirânica, existência parcial. Inimigos? O Estado, o social, os não físicos, os morais, os racionais, os que dizem não ao acontecimento, os que não deixarão você experimentar no seu campo, diz Deleuze em relação a Artaud, vão te perseguir! Mas a realidade não reside no estado das coisas.
Movimento, acontecimento: problemas para o Estado, problemas de Platão. Pois a essência da matéria é luz e durar é sagrado, me constitui, o ato. É isso que me é roubado. Experimentação de si enquanto uma atividade. Transformação como razão da minha própria potência. É chocante: não há espaço para isso nem mesmo no campo da arte e da cultura. Restam representações do corpo, representações da intensidade.
O artista pode avaliar, não julgar, pois todo julgamento é por ficção.
O branco, geral. Este branco, específico. Platão e Aristóteles ficaram nisso. Não compreenderam a brancura, ou seja, uma singularidade, uma linha de acontecimento. Não um valor geral, mas um valor singular, algo que liberta a energia. Singular e comum não são opostos. O comum é o bom habitat da diferença. Só o fraco é poderoso. O forte é potente, é outra coisa. Dançar é gerar superfície de acontecimento. Estética da potência. Deus é corpo, por isso Espinosa foi tão odiado. O desejo se preenche pelo acontecimento de si mesmo. A técnica no lugar do acontecimento é o ó. Precisamos retomar o criador enquanto criador de si mesmo, pois uma coisa é tudo o que ela pode. O corpo é o que ele pode. Espinosa. A eficiência, a competência, a responsabilidade: prêmios ideais.
Quem não tem corpo não tem pensamento. O que não falta é gente a representar a intensidade na arte, na dança, no teatro. Cadê a multiplicidade intensiva do corpo, da mente? Cadê nosso caos? Dá para usar a representação como oportunidade. Não precisamos moralizar a representação. O problema é colocar a representação no lugar da realidade.
Experimentar o corpo é perigoso porque um mínimo gesto, um mínimo movimento pode desmontar toda uma estrutura de Estado. O corpo contra o Estado. Coexistência e não sequencialidade ou sucessão. Na coexistência o infinito é acessado aqui e agora. Na sucessão o infinito é senão uma ideia impotente.
Carmelo Bene, o cara que matou Romeu e deu vida longa a Mercúcio. Não penso, sou, Henry Miller.
Tudo que se estudou tem que virar energia, em sentido intensivo, não intencional. O sentido intensivo gera passado e futuro ao mesmo tempo, o comum, que encontra a singularidade e gera diferença. Estudar é exercitar a criação de conceitos. Bergson em Deleuze é Deleuze.
O mais simples é o que traz mais coisas. Aquele que faz sempre o mesmo é singelo, dispõe de poucos elementos, encontra um meio de continuidade intensiva. Desconfiai dos mestres. Não quero seguidores, quero amigos. Corrupção é estar separado do que você pode e recompensa mal o mestre aquele que não quer mais do que ser discípulo.
A criança joga 766 vezes. Na 767a acabou. E o que traz o corte? A travessia de um limite. O limite como fronteira de passagem energética.
Trabalho é acontecimento, aquilo que se produz como potência de criar realidade, algo que retorna sobre o que flui, condição indeterminada, um horizonte que se abre para a diferença. Confia no acontecimento, o desejo é o começo do corpo, o acontecimento deseja, a natureza inteira é desejante. Não deixe que capturem seu desejo.
A noção do comum é uma dupla afirmação. Uma vespa e uma orquídea, por exemplo, reinos diferentes. Mas há um devir vespa na orquídea, e um devir orquídea na vespa. E o devir orquídea da vespa não tem nada a ver com a orquídea! Isso é o que elas têm em comum.
Permanece um pouco mais nas zonas problemáticas. E se a dor for uma aliada, uma provocação? Menos forma, mais intensidade. A linha é o elemento que pinta e não o que está pintado. A linha enquanto intensidade de uma expressão.
Rebaixamento do corpo ou elevação do corpo, duplo problema, pois assim o corpo jamais está lá onde está, na persona, ou melhor, perzona. Zona de ser, limiar de acontecimento, zona de potência mais que indivíduo, sujeito, coisa rígida, fixa.
Comum é um pensamento de relações. Sociedade é diferente de comunidade. Comunidade é compreensão do comum. O cidadão, o civil, são escravos, não entendem e não querem o comum. O simples é enorme. O simples é o contrário de fácil.
No corpo burocrático o movimento não é acolhido. A escola te mete um corpo, uma responsabilidade frente à paixão. Responde quando eu te pergunto! Pequenas mortes que vão sendo enfiadas em nós. Você está evoluindo, coisa pífia, cultura de pessoas. Quem pensa não é o ser, é o devir que se pensa.
Só o homem livre tem amigos. O primeiro ressentido, o reativo, não contempla o acontecimento. A imagem ocidental do pensamento nos engana, nela a vida fica mais fechada.
Onde eu sou cúmplice? Por que eu compro isso? Que nível de atolamento me atingiu? A singularidade só se dá por meio de uma zona comum. O cuidado com a intensidade implica no combate à finalidade.
O sofrimento pode estar a favor da vida. O sofrimento reafirma a vida. Não use o sofrimento para acusar, envenenar. Nietzsche. Desconfiar do corpo é que é estado de exceção. A essência da vida ser a castração, Lacan, isso é estado de exceção, crer que prazer é riqueza, que prazer é reconhecimento.
Até as minorias estão vendidas, pois não se trata de forma ou subforma, mas de entrar em movimento. Aliás, Deus, esse ladrão. Artaud. Deus nasceu da costela de um mau sofredor. Por ideia inadequada ou ideia adequada, você se efetua de qualquer maneira. Ao desejo não falta nada. Espinosa.
Só é ético quem é amoral. Moral gera dívida, prêmio, castigo. É ético quem diz, venha a mim todo o acaso, e é ético quem põe o acaso de joelhos. Venha a mim tudo, mas não de qualquer maneira, eis a ética. Nietzsche. À altura, à altura do acontecimento.