MONTE

01/04/2015

[29 de janeiro a 26 de março de 2015]

Oficina Cultural Oswald Andrade. Bom Retiro. São Paulo.

MONTE. Plataforma de compartilhamento de processos artísticos.

Pessoas de várias artes se encontram numa sala da Oswald Andrade. Quase tudo é madeira ao nosso redor. Quem seremos? Júlia, Theo, Flora R, Mariano, Saulo, Victoria, Alex, Bia, Joana, Renato, Gustavo, Kalu, Flora L, Ilana, Raquel, Glamour, Leandro, Filipe, Eidglas. “MONTE quer dizer monte de montanha, monte de montar, monte de um monte de coisas. MONTE quer dizer que eu gosto do M antes do O antes do N antes do T antes do E”. Júlia e Theo nos oferecem esta oficina. Ao passo que falam eles produzem alguns sentidos. “O processo não tem um conteúdo prévio, o processo são as relações que ele circunscreve, as relações entre artista e obra, por exemplo: o processo tem a ver com uma horizontalidade entre categorias: isso exige silêncio, ele também é silêncio, o processo exige uma busca por sentir as coisas de outros jeitos, menos verbais talvez: o processo é espaço se abrindo”. Me pergunto o que está pressuposto na ideia que se faz do que seja um processo criativo. Me pergunto se a obra se define necessariamente em função de um sujeito “eu…”. Saímos ao pátio da Oswald Andrade e Mariano nos recebe assim. “Bom, como vocês sabem a água está acabando e isso nos põe um tanto mais primitivos e animalescos. E neste bando animal que somos eu serei o babuíno. Ele raramente fica nervoso, o babuíno, mas às vezes ele fica bem nervoso. O babuíno”. Mariano se refere à construção de um personagem seu que fará parte de uma peça de teatro ainda por vir. Seu personagem é o Babuíno que ele vem inventando há alguns meses. Ele está interessado em deslocar para cá o universo pessoal do seu animal.          [Babuíno Mariano]            E então saímos à rua. Vinte pessoas conversam, algumas pela primeira vez, ao passo que caminham sem pressa pelo veio nervoso do Bom Retiro numa quinta-feira à tardinha. Os peripatéticos somos empíricos, acreditamos que uma caminhada pode adotar a forma de uma conversa. Saímos à rua nos organizando e nos reorganizando. Na calçada falamos em trânsito, na praça falamos em roda. A caminhada é objeto bom de pensar. Caminhar é o modo específico humano de locomoção. E caminhar tem muito a ver com coisas específicas que a gente faz: falar, pensar, dançar, desenhar, escrever. Não são dons divinos, visto que não se trata de conhecimentos congênitos. A gente simplesmente não nasce caminhando como fazem outros bichos que a gente vê nascendo praticamente de pé. Caminhar é descobrir, experimentar. Caminhar é procedimento artístico. “A dança e o traço são coisas muito próximas para mim”, nos diz Bia. Há algum tempo ela vem se dedicando ao estudo da prática caligráfica e, coincidentemente, seu professor acaba de lhe devolver os desenhos que ela realizou ao longo dos últimos anos. Ela os trouxe para cá. São ideogramas enormes que ocupam isoladamente todo um pedaço de papel cada um. Lua, coração, samurai, montanha, céu, não são exatamente palavras tampouco desenhos, são percursos gráficos. Bia nos explica que cada traço decorre de um movimento corporal preciso que se dá em ritmo respiratório. Um ideograma caligráfico é em grande medida a tradução de uma sequência de movimentos específicos realizados com o corpo inteiro. Esses movimentos são treinados sistematicamente ao longo das aulas, uma preparação de cerca de 2 horas antecede a realização final do desenho, a ser levada a cabo num só impulso. Bia é dançarina. E ela conta que sua dança aumentou com a percepção das linhas que o corpo traça no espaço. Há uma relação íntima entre a prática caligráfica e o Teatro Noh, que ela também pratica, em meio a um monte de japoneses velhinhos e poderosos. Ela conta que nesse universo, as formas são livres porque são exatas pois por serem exatas permitem comunicação repleta entre as pessoas.             [Caligrafia]             Bia também trouxe até nós seu caderno de desenhos onde se encontram reproduções despretensiosamente expressivas de pessoas e coisas que habitam seu redor. Marido, parentes, amigos, o Gurgel estacionado à porta de casa, “desenhos que são interessantes por trazerem à tona objetos pelos quais em geral não temos grande interesse”, aponta Júlia.          [Desenho de um plugue de tomada]           Temos um carpinteiro entre nós, Saulo. Ele prefere carpinteiro a marceneiro. Carpinteiro está mais íntimo da matéria da madeira. Marceneiro está mais íntimo da forma final. Marceneiro é coisa mais recente. José era carpinteiro. No mesmo dia em que começamos esta oficina, Saulo comprou um pacote barato de pornografia via webcam e desde então, todos os dias, a primeira coisa que ele faz ao acordar é entrar no site, acessar uma mulher disponível no menu e escrever a ela, oi, sou artista plástico e quero desenhar você, então fique à vontade, pode fazer o que quiser. “Mas elas não sabem fazer muita coisa além de se masturbar”. Um desenho para cada modelo vivo de site de putaria. Um desenho por dia para cada dama pornô. Um calendário explícito de traços incertos, oscilantes, apressados. Ele tem 7 minutos para fazer o desenho. “Depois é tela preta e pronto, acabou”. 7 minutos é o tempo estipulado para a economia do gozo. Júlia quer comprar um desses desenhos que é uma mulher a penetrar o cu com o dedo. “A posição do desenho no espaço, a disposição do corpo na imagem, parece saltar para fora do papel”.                  [Desenho pornográfico de observação]                  Em contraposição a esse trabalho, que Saulo inicialmente caracteriza como “de observação”, ele realiza um outro, “de memória”. Ele vai a algum lugar onde permanece por um bom tempo, depois volta para casa e desenha os personagens que se inscreveram em sua mente. Um dia Saulo pegou 10 ônibus, um após o outro, e foi guardando na cabeça as feições dos cobradores para, mais tarde, leva-las ao papel. Noutro dia Saulo foi até um bar e ficou lá das 9 da manhã às 4 da tarde bebendo e guardando as caras das pessoas. “Na verdade, ambos são desenhos de memória, são escalas distintas de memória, observação é memória”. Saulo conta que coleciona últimos olhares. Ele tem na memória uma prateleira de olhares derradeiros de pessoas que ele nunca mais viu. “Eu sou muito atento às máscaras que a gente usa a cada situação”. Seus desenhos de memória, personagens de olhos estranhamente vazados, têm aspecto de máscara. As expressões são duras, profundas, quase sólidas. Memória dura, observação mole.                [Desenho de memória de cobradores de ônibus]                O que Joana nos apresenta é um trecho em curso da performance que ela vem amadurecendo. Besta é o nome a princípio do trabalho. “Tudo começa com a ideia de arena, de tourada”. Ela conta que o nome Besta lhe agrada pela duplicidade de acepções, do tolo ao monstruoso. No saguão interno da Oswald Andrade a duplicidade ganha analogia, nós sentados a uma extremidade, mais próximos à entrada, ao passo que ela se posiciona na outra extremidade, lá longe. Todo o saguão nos separa, nós tolos ela monstro ou quem sabe vice-versa, a composição é bela. Linhas paralelas de cima a baixo se afunilam e a tomam por ponto de fuga – ela veste escuro. O efeito ganha força com a disposição das linhas das sombras que se cruzam na parede atrás dela, em X. A trilha sonora é o tempo sem fim do badalar ininterrupto de um sino. De longe ela posa demoradamente, estática, em pé, depois de costas, depois sentada no chão. “Giacometti é uma inspiração. Ele realizou a incrível tarefa de esculpir pessoas como a gente as vê de longe”. Chego a imaginar essa distância levada ao extremo. Imagino a plateia numa extremidade e ela na outra extremidade de uma praia de orla longínqua, ela um borrão negro e minúsculo na paisagem. Num determinado momento da performance tenho ânsia de me deslocar até ela para de perto divisar seus pormenores, o que de fato nos é oferecido quando algum tempo depois Joana inicia uma caminhada que atravessa todo o saguão e a traz até nós, causando um efeito de estranhamento frente ao fato de podermos repentinamente ver de perto a pessoa que até então mal distinguíamos. Depois Joana conta que enquanto está lá longe ela realiza uma série de pequenos movimentos, pequenos acontecimentos se dão em seu corpo longe o suficiente para que não sejam exatamente notados. Ela diz buscar nesse momento um estar mais perto de si. Mas nós estamos longe dela. Então me pergunto que tipo de afastamento se dá ao passo que ela de nós se aproxima.           [Besta]          Em algum momento, por alguma razão, Júlia nos diz que é sempre melhor a gente ser si mesmo ainda que se trate de uma solução, ela reconhece, problemática. “De frente ou de costas ser si mesmo é um problema muito maluco, afinal, o que é ser si mesmo senão uma eterna construção?”. Leandro, por exemplo, coleciona frases com “eu não”. Ele pretende criar uma instalação sonora a partir dessas frases. Ele conta que o texto vai criando regras internas, “Não tem marcação de gênero, está tudo no presente…”. Como Júlia anda interessada na complexidade da leitura de textos em voz alta, ela então sugere que Leandro grave com sua própria voz um experimento falado dessas frases, mas no fim das contas é ela própria quem o faz, “Eu não estou falando de mim. Eu não me expresso. Eu não tenho casa. Eu não inauguro Eu não estou aqui. Eu não sei o seu nome. Eu não entendo. Eu não sinto a voz em mim. Eu não faço o que quero. Eu não fico. Eu não vejo meu rosto. Eu não sei. Eu não trabalho. Eu não sou eu…”.                [Eu não]                No início de um de nossos encontros, Júlia reproduziu em caixas de som a voz de Elienai Assunção lendo um texto seu que solicita que deitemos no chão, “Antes de mais nada deite. Onde estiver. Qualquer lugar. Desde que tenha chão. Existe algum lugar que não tenha chão? Onde há um céu há um chão. Então deite neste chão de forma que possa ver o céu. Se houver um teto que te impeça de ver o céu feche os olhos”. Aí a voz divide o mundo entre dois polos opostos porém superáveis, o chão e o infinito, e solicita que atentemos, deitados, para a metade de nós que toca o chão e a metade que toca o infinito. “Toque. Calma, você já está tocando. Sua pele toca o chão. Desde que você existe, de alguma forma, você toca algo”. E solicita que atentemos para o nosso peso no chão como meio de nos transportarmos para “abaixo do chão” e depois solicita que atentemos para a nossa propensão para o ar como meio de nos transportarmos para “acima do infinito”. O corpo se polariza, o que toca o chão é peso e afundamento no subterrâneo do chão, o que toca o ar é do tamanho do universo. “Perceba que você chegou ao infinito e ainda está naquele lugar abaixo do chão”. No chão, deitado, sentindo no corpo a imaginação dessas coisas, me sinto a misturar estrelas com mandiocas.                [Chão-infinito]                   Dois objetos que sintetizam os atuais afazeres criativos de Theo: uma haste de madeira curva e uma pequena chapa de chumbo com um dos lados folheado a ouro. “Eu gosto muito do ouro, é uma substância estranha, primitiva, cheia de coisas. Eu já fiz muito trabalho complicado e tenho me interessado por pesquisas mais elementares. Estes objetos trazem uma síntese formal que me agrada. E eles contêm um elemento de transformação”. Faz 1 ano e meio Theo vem aprendendo uma técnica para envergar e moldar pedaços de madeira através do vapor. Ele está interessado em processos de transformação. “Em 1 ano e meio muita coisa acontece, a gente vai e volta, e os espaços da criação vão se abrindo. Em meus projetos as coisas levam um tempo para acontecer. E eu gosto muito do fato de estar aprendendo uma técnica”.                 [Haste de madeira curva e chapa de chumbo folheada a ouro]                Kalu adora contar histórias, ela é historiadora e avisa que seu processo criativo teve início assim que ela foi concebida. “Gosto de poesia, gosto de teatro. O teatro me salvou da introspecção. Eu fui uma garota gordinha”. Kalu fez história para não fazer artes. “Tive medo de que as conformidades de um curso de artes tolhessem minha criatividade”. Parte da obra de Kalu é musical. “Gestos simples para a música das coisas”. Ela nos apresenta a obra Cárcere, em que ela toca uma roda de bicicleta ao passo que um parceiro toca flauta. Ambas irreconhecíveis na audição. Ela fez uma turnê na Europa com esse trabalho. Lá ela se especializou em eletroacústica. “Gosto muito da coisa analógica, simples”.               [Cárcere]                Atualmente, ela vem explorando as possibilidades artísticas do gelo de forma. Há algum tempo atrás ela fez uma simpatia que consistia em congelar um copo d’água com um papel e um nome de alguém escrito nele. O papel continha o nome de uma pessoa que ela gostaria de esquecer. E como o papel fosse rosa, o gelo ficou com um aspecto de quartzo rosa. Ela então criou a obra Cristais do esquecimento, que consiste em congelar água com papeis dentro contendo o nome de coisas que as pessoas não querem mais. Acontece que após o degelo a tinta some do papel e de fato a coisa se apaga. Recentemente ela fez com que 66 pessoas escrevessem seus medos em pedaços de papel, aí então ela congelou todos esses medos em 66 cubos de gelo que, numa bandeja, após derretidos, terminaram por apagar dos papeis os nomes dos medos das pessoas. Congelar para esquecer. O próximo passo de Kalu será, através de um microfone de contato, registrar os sons que o gelo faz ao se formar e, depois, ao derreter.               [Cristais do esquecimento]              Então Eidglas entra em cena batendo a porta com força e gritando também com força, “Bomba! Bomba! Bomba!”. Sua dança tem um desengonço sutil meio dúbio. Dura pouco. Reconheço o gesto de um soldado que lança uma granada. Seus pés descalços parecem insustentáveis. Depois ele nos explica, “Eu sou meio aquário e eu queria estudar o oposto disso, o oposto do que eu sou, algo mais fogo. Por isso a bomba”. De sua dança as pessoas dizem, “Muita coisa em pouco tempo”; “Tu já entras muito em cima e depois não há nada que supere aquela explosão inicial”; “Não precisa haver essa superação, o início pode ser o colapso”; “Mas também pode voltar a explodir”; “A tensão do início pode continuar reverberando pois depois daquela bomba nada mais é tranquilo”; “Dá para pensar um trabalho de 1 minuto. Seria surpreendente, afinal quem contrataria um trabalho de 1 minuto?”; “Mas já que é uma festa, algo pode acontecer por 30 minutos e as pessoas nem vão se dar conta”; “Você pode transformar essa festa no que você quiser, num zoológico”; “Numa passeata”.            [Bomba]                 Acabamos de conhecer o trabalho de Flora R. O processo que ela nos apresenta é o conjunto de sua obra, em retrospectiva. Ela está declaradamente interessada em compreender os cruzamentos, “o que se repete” ao longo do seu percurso criativo. Seus primeiros trabalhos são restolhos de maquetes imobiliárias que ela despedaça em fotos desoladas e desoladoras.                 [Restos de maquetes dispersos na areia]              Depois ela saiu a fotografar paisagens urbanas que lembrassem maquetes. Montanhas de alvenaria fake. “No início eu me importava demais com o discurso dessas imagens. O trabalho então ficou chato, fiquei triste, perdi o prazer, e decidi fazer algo em que eu não precisasse pensar tanto, algo sem coerência, algo desimportante. Aí voltei a desenhar”. Os desenhos que se seguem são pungentes, possuem aspecto de coisa real, como se tivessem sido desenhados em três dimensões. São chapéus-mosquiteiros dentre outras coisas. Vermelhos. Giz de cera. Lápis de cor. Canetinha. Desenhos não pensados altamente elaborados.           [Chapéu-mosquiteiro]          Flora quer entender a constelação que o seu trabalho forma no tempo. Se por algum tempo ela se poupou de pensar, ela agora olha para trás em busca de um mapa. Gustavo crê que a obra de Flora se direcione às coisas fora de lugar, às coisas cingidas pela marca do que lhes é exterior, às coisas abrigadas no âmago desconforto do que lhes é estrangeiro. Os últimos trabalhos de Flora têm algo a ver com isso. Seus últimos trabalhos, que ela trouxe no primeiro dia dispondo-os sobre o piano, são desenhos impactantes de cobras duplamente impossíveis, cobras que sem cabeça, e mesmo assim, andam a engolir bichos outros.                [Cobras sem cabeça a engolir bichos outros]                    Quatro cadernos que resultam de quatro diálogos com quatro pessoas do círculo pessoal de Alex. Esta é sua obra. Um dos cadernos contém um conto de amor escrito por Alex e uma amiga. Ele é a menina. Ela é o cara. “Este conto é o que alinhava os demais cadernos”. Cadernos-diálogos em que as vozes vão se intercalando. Ele lê para nós uma introdução aos dois personagens. “Eu gosto de cadernos. Eu acho muito importante letra de mão. E gosto de ver como cada um organiza a página em branco”. Quatro cadernos, cada um contendo o universo íntimo de um diálogo que Alex vai estabelecendo com cada uma das quatro pessoas que ele escolheu para tal. Essas quatro pessoas não se conhecem, mas os diálogos geram relações entre si. Passageiros é o nome a princípio da obra, que segundo Alex, tem por fio conceitual condutor a ideia de que a comunicação é uma tentativa fadada ao fracasso.            [Passageiros]            Há entre nós um homem de forte sotaque português, Filipe. Ele espera encontrar diálogos por aqui. Foi ele quem me instigou a assumir a autoria deste texto que a princípio propus aberto e coletivo. “Pá, pois se há ali um texto que está a dizer coisas sobre meu trabalho como é que vou dialogar com o mesmo se não sei quem é que o está a dizer?”. Filipe tem uma obra complexa. Ele fez de sua casa uma galeria cujo principal quadro ele acaba de trazer até a sala onde se dão nossos encontros. Era preciso “ver a obra noutro canto”. O quadro não tem um nome visto que já teve vários. Ilha Branca, por exemplo. Filipe o pendurou sem que reparássemos. O quadro ficou muito bem ali, na parede logo acima do piano. Flora R chegou a se perguntar se o quadro não estivera sempre ali. Trata-se de “uma moldura única”, branca, à qual se deu uma fotografia também repleta de branco. “Branco é o quê?”, ele pergunta, “Branco mesmo só a luz que incide na janela”, ele responde. A imagem mostra uma cozinha onde dois humanoides de gesso, um de teor feminino outro de teor masculino, estão sentados a uma mesa de jantar. Tudo ao redor é esbranquiçado com exceção das chamas das velas. Porcelana, cera, louça, um filtro branco de barro.  Na parede ao fundo da cena encontra-se misteriosamente a mesma moldura que agora margeia a foto que vemos. Mas se diante de nós a moldura branca está cheia, na foto ela está vazia. Os dois seres em cena, de mãos e pés estranhamente grandes, são moldes em gesso do corpo de Filipe. “É tudo uma construção”, ele afirma. No entanto essas duas criaturas de gesso ficaram sentadas em sua cozinha por 2 meses. “O corpo humano me interessa. A forma me interessa”. Filipe tem uma questão com o branco. Faz algum tempo, numa casa em demolição na Rua Purpurina, Vila Madalena, ele pintou um quarto inteiro de branco.             [Branco]                 Júlia e Theo revelam que teremos uma grana em reais para materializar o que decidirmos ao final da oficina. Há uma indefinição a respeito do que fazer com esse dinheiro. “Podemos fazer uma mostra, podemos dar uma festa, um piquenique indoor aberto a convidados, podemos publicar algo, fazer um pôster, podemos comprar água, servir alga, fazer lambes”. Ficamos com o piquenique e o pôster. Filipe sugere que na totalidade de um dos lados seja impressa uma fotografia a ser pensada e tirada aqui, durante a oficina. Theo então traz a câmera e ao final de um de nossos encontros nos damos a incumbência de algumas poses. Júlia chega a sugerir que posemos como fazem as vedetes pornográficas de Saulo. Mas no fim das contas ficamos com uma foto que retrata Glamour a segurar uma enorme folha de papel manilha que esconde a metade superior do seu corpo. O papel que ela segura é o mesmo a ser utilizado na impressão da foto e por isso o papel vaza a imagem fazendo as vezes, vejam só, de si mesmo. Atrás da foto a imagem de um texto-besta visto de longe. A apresentação de Glamour vai começar. Ela se troca na frente de todos. De costas ela é o que se poderia chamar mulher. De frente é meio a meio. Sua obsessão pessoal neste momento é recriar Elis Regina num show que termina em nudez total. Glamour é como um objeto artístico, seu corpo é a obra de saída, ou de chegada a depender do caminho. Ela dança, dubla “você não sente não vê mas eu não posso deixar de dizer meu amigo que uma nova mudança em breve vai acontecer”. Difícil não fazer irem juntos a letra dessa música e o efeito ao mesmo tempo cênico e real que Glamour tem. “E precisamos todos rejuvenescer”. Seu corpo rejuvenesce a separação dos gêneros, religa as categorias, Glamour é como o girar sagrado da roleta. A princípio ela pede que fechemos os olhos. Ela então marcha de salto alto entre nós. Estamos sentados no chão que ecoa o som do encontro entre os bicos dos saltos e as tábuas de madeira. De repente as teclas do piano, até então invisíveis, soam atabalhoadas. “Alô, alô marciano aqui quem fala é da terra”. Depois abrimos os olhos quando ela começa a dublar e dançar a velha roupa colorida em termos de um strip tease trans. “Eu não gosto da Elis Regina, mas gostei dessa Elis meio torta, dessa Elis desconstruída, misturada em homem e mulher. Me veio o lado perturbado da Elis que ela tanto tentou esconder”, diz Júlia.                [Elis Glamour]                 A questão atual da vida de Gustavo é a qualidade da sua atuação no mundo: artista ou ativista? Ele tem frequentado uma ocupação urbana e vive se perguntando, quem sou eu neste lugar? “Outro dia eu comecei a pensar no que fazer para ajudar, no que fazer por aquele espaço. Então eu decidi descascar laranjas e oferecê-las às pessoas. Depois lavei a louça. Pensei nessas coisas enquanto intervenções criativas. Eu me interesso por ações políticas, mas tem que haver o lúdico, senão a boca espuma”. Gustavo conta que a intensidade de seu engajamento político tem atrasado a conclusão de uma série de trabalhos seus em vídeo. “Eu preciso terminar esses vídeos, mas as coisas vão me tomando e vou sendo levado. Eu preciso terminar esses trabalhos. Eles vão ficar bonitos, serão importantes para o futuro”. Gustavo conta que a ideia das laranjas tem a ver com sua experiência etílica de ano novo. “Na noite de ano novo meu sogro, que é médico, traçou um cronograma de ingestões e eu o acompanhei. Álcool só cachaça. Uma dose a cada tanto tempo. Água a cada tanto tempo. Ao final da noite, frutas. Acordei no dia seguinte maravilhoso”. Gustavo possui a lembrança viva de um acontecimento que viveu aos 8 meses de idade quando mergulhou numa piscina e antes de se afogar foi salvo pela tia. “Eu achava que essa lembrança não tinha nada a ver com o meu trabalho, mas então me dei conta que sim”. Há uma obra sua que se chama Aquário de cabeça. Sua cabeça imersa num aquário, ele usa um snorkel para respirar e através dele contar às pessoas a respeito desse seu afogamento mítico-fundador. Seus trabalhos exploram o voo, no ar ou embaixo d´água. Ele nos mostra um vídeo em frames acelerados, uma animação com bexigas que tem seu corpo por superfície. No vídeo ele aparece do tronco para cima trajando óculos de nadar e sobre a sua pele passeiam bexigas que criam desenhos que são como pequenos movimentos narrativos. As bexigas inflam, murcham, ora entram por uma orelha, ora saem pela outra.               [Aquário de cabeça]           Um quadrado. Como dividir um quadrado em três áreas iguais? Victória foi em busca dessa solução. Em algum momento ela quis saber se isso era possível, durante algum tempo esse foi o seu problema. Ela gosta de matemática. Eu também. A solução, ela conta, é dividir o quadrado em três triângulos. Esses três triângulos têm áreas idênticas apesar de suas formas serem completamente diferentes. É isso o que espanta a Victória. Um quadrado, uma forma reta, completa, o cúmulo do próprio quadrado, não pode ser dividido em três formas iguais. Para ser dividido em três áreas iguais o quadrado exige a presença de três triângulos de formas completamente diferentes! “Se a matemática é assim, a natureza também deve ser, se a matemática está nas coisas”. Victoria acredita no cinema, ela tem um fascínio pelo olho que gera ponto-de-vista. Ela nos trouxe as seguintes frases, escritas em letras de se escrever em muros da cidade. “O cinema é senão concomitante ao olho que assiste, ao olho que vê. Assim como o artista é o cavalo da arte, o olho fotográfico é no cinema a possibilidade de ficção. O olhar que assiste direcionado pelo olho que viu constitui essencialmente ficção”. Victoria trouxe também um gravador e um fone de ouvido para que possamos ouvir a gravação de sua voz a dizer o que estamos a ler. Victoria também nos apresenta um fragmento fílmico, Foto caderno pintura selvagem. O filme consiste numa foto bucólica que se torna um desenho abstrato em giz de cera por meio de uma lenta sobreposição. A trilha é ruidosa e sua voz a compõe apesar de não podermos distinguir tão bem o que depois descobrimos ser uma reflexão sua acerca da fotografia, meio de representação aparentemente preciso. Sua voz parece estar falando outra língua. O som põe a foto em movimento ao passo que a foto se torna outra coisa. O filme dota de movimento aquilo que fica parado. É como se a imagem derretesse dando lugar a uma estranha radiografia daquela paisagem inicial.                  [Foto caderno pintura selvagem]               O trabalho de Raquel também se dá sobre a transformação inesperada de fotografias. Ela as transforma ao passo que as tridimensiona no espaço, dotando-as de volumes e dobras e profundidades. Sombras e luminosidades causadas pelo retorcer do papel onde se encontra a foto impressa. Fotografias amassadas se tornam objetos imagéticos curiosos. Pedaços de vidro acompanham esses objetos de inflexão fotográfica. Raquel nos conta que ela não concebe objetos isolados, mas relações entre objetos no espaço. A imagem por trás desses objetos de papel não é o que interessa. Algumas dessas imagens vêm se repetindo. Algumas são abstratas e nem sequer dão a entender o que são.                [Massa fotográfica]             Já Flora L está obcecada pela construção de um farol. “O farol é um dispositivo de comunicação, um dispositivo civilizatório. É como uma carta de amor não respondida, ele está sempre ali, com ou sem observador. O farol é fotografia sem imagem”. Ela explica que não se trata de um farol fixado para sempre no chão, mas de um farol portátil e desmontável, um farol que se leva na mochila. Flora realiza expedições em que leva o farol até uma montanha turística da cidade de Monte Verde. Em suas expedições até a montanha ela encontra esculturas naturais no meio do mato, esculturas que lhe trazem insights que ela anota num caderno, “Fazer um caderno é forjar um caderno”, ela diz ao passo que vou coletando ali frases dispersas, “Máquina de medir o escuro… Máquina de medir a neblina… How far away can a light house be seen?” Para a construção do farol, Flora conta com a ajuda de um engenheiro que de vez em quando erra as contas e sugere o emprego escuso de cola super bonder ou durepoxi – ele então explica a Flora que engenharia não tem a ver com garantias, mas sim com engenhocas.               [Farol]          Quando Ilana foi morar no Japão sua mãe estava doente. Ela passou 9 meses lá e ao voltar sua mãe faleceu. Ela se emocionou profunda e desconcertantemente no dia em que lhe perguntei acerca dessa história. “Hoje faz 1 ano que minha mãe foi internada. Daí então foram 80 dias dos quais ela jamais voltou”. Então compreendi que a curiosidade, ao ser saciada, pode ser extremamente constrangedora. O processo que Ilana nos apresenta é a construção de um livro repleto de vazio a envolver fotografias nubladas que traduzem esse sentimento de perda irreparável, sintetizado na frase, “Mas é ela que de fato está do outro lado do mundo”. As fotos funcionam no livro de Ilana como um texto em que as frases mudassem de lugar sem contudo perder o sentido. Ela conta que começou a fotografar porque não queria mais escrever. Trata-se de um livro em grande medida não escrito. Um livro-elipse que, ela conta, ganhou valor ao ser trazido para cá. “O MONTE me fez crer que há algo neste trabalho, o MONTE me mostrou que não tem que coisa alguma”.          [Mas é ela que de fato está do outro lado do mundo]                 Assim como ocorreu com Ilana, MONTE modificou o estado do trabalho em processo que aqui apresentei, o monólogo Hoje, que estou escrevendo a partir do meu diário do ano de 2010, ano perdidamente difícil em que me mudei para São Paulo. Em MONTE pela primeira vez eu me apresentei publicamente enquanto escritor-artista, além de etnógrafo-antropólogo. Aqui pela primeira vez atuei um texto frente a um público. Foi transformador dizer, na condição de intérprete de mim mesmo, “Hoje eu alcancei a compleição e o temperamento das samambaias. Coagulei verdes repletos de clorofila, virei planta do pé, estiquei o chão. Vocês sabem que, como tudo, eu vou passar. Hoje sonhei com isto. Exatamente assim, eu declarando estas imagens, presenteando minha carne ao mundo. Sonhei que eu era bom morto. Pendiam palavras do céu, ecoando intimidades misteriosas. Plateia, atmosfera, eu, cingidos, corporificando estes pretextos”. Trata-se de uma encenação dúbia, em que ora leio o texto na tela do computador ora atuo o texto de memória. “É bom porque ler e atuar vão costurando a construção de uma presença frágil”, diz Theo. Em cena eu vou enumerando uma série de coisas, objetos, bichos, acontecimentos, várias coisas reais que se dão sem que exatamente se deem. Eu descrevo e às vezes vivo coisas concretas que de fato não estão lá.                  [Hoje]          Júlia sugere que eu filme o estado atual de Hoje para que eu possa me ver e estudar. Mas eu tenho medo do espelho, e gosto da ideia de não saber exatamente a imagem que crio. Theo então sugere um espelho em cena, mas um espelho imaginário. Mais tarde, Glamour sábia me diz, “Acho importante fazer o que Júlia sugeriu, pois cresce quem supera o fato de que somos todos, todos ridículos, sem escapatória”.

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Sobre este texto disseram, “Parece uma novela, uma crônica, um roteiro, daria para fazer um filme”; “Parece um diário, mas não é um diário”; “Parece uma fotografia em linha, afinal, um texto nada mais é que uma longa linha”.